Morte após golpes de cassetete acende alerta sobre letalidade das polícias em MS u713r
Na opinião de especialista, naturalização das mortes decorrentes de intervenção policial pode contribuir para abordagens cada vez mais truculentas 1z6lv
No enredo das mortes por intervenção policial que fazem Mato Grosso do Sul bater recordes de letalidade no contexto destas abordagens, o modus operandi é sempre o mesmo, segundo as corporações.

Cada morte foi uma resposta às “injustas agressões” sofridas pelos agentes de segurança – o jargão policial para legítima defesa -, apontam os registros oficiais. Na prática, saiu perdendo quem demorou mais tempo para apertar o gatilho ou teve a pior mira.
Uma das mais recentes abordagens policiais, que terminou na morte de um suspeito em Campo Grande, no entanto, destoa da maioria das ocorrências do tipo. Antônio Bonetti do Nascimento, de 48 anos, caiu no radar da PM (Polícia Militar), no dia 4 de fevereiro, após descumprir medida protetiva concedida à nora dele.
Ao ser encurralado pelos polícias, Antônio “se armou” apenas das palavras. Ofendeu e xingou os PMs até ser “calado” a golpes de cassetete. Consta no boletim de ocorrência que os golpes foram dados nas pernas e nos braços do suspeito, “na tentativa de vencer a resistência”.
Antônio foi parar na Santa Casa de Campo Grande e morreu horas após a abordagem.
Para quem é especialista em segurança pública o episódio levanta suspeitas sobre os eventuais excessos dos policiais militares.
“É nítido que possivelmente houve um excesso porque ele (policial) estava utilizando uma arma que permitiria ele dosar melhor o uso progressivo da força diante de um opositor desarmado, algemá-lo e levá-lo preso. Em tese, o cassetete é uma arma menos letal então possivelmente houve um abuso da força”.
Carolina Grillo
Doutora pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carolina Grillo é coordenadora do GENI/UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense) e se dedica aos estudos sobre violência, tráfico de drogas, segurança pública e justiça criminal.

Na opinião da especialista, a ocorrência que vitimou Antônio é uma excepcionalidade, diante da grande maioria de mortes por intervenção policial decorrentes de troca de tiros. De qualquer forma, a naturalização dos óbitos decorrentes da abordagens policiais pode contribuir para ações cada vez mais truculentas, ela explica.
“A maioria das mortes por intervenção de agentes do estado são por arma de fogo, elas não são em geral decorrentes de agressão. O fato da polícia ser tão letal normalmente é atribuído inclusive ao uso de armas que são muito letais. Por exemplo, a polícia do Rio de Janeiro usa fuzil, então, ela acaba sendo mais letal do que a de São Paulo que usa pistola. Quanto mais letal a arma, mais letais são os efeitos. No entanto, a impunidade sistemática, a impunidade dos abusos de uso da força de algumas corporações, ela também facilita, ela estimula o uso contínuo da força exacerbada por parte de outros policiais”.
Carolina Grillo.
A Polícia Militar informou que vai investigar as circunstâncias da morte de Antônio, procedimento que é praxe nesses casos e imprescindível para corrigir eventuais erros nas abordagens e evitar que esse tipo de situação volte a se repetir, conforme explica Carolina.
“Neste caso é até mais provável que gere alguma forma de sanção para o policial do que na maioria dos casos com mortes por arma de fogo. Porque, nesse caso, o policial não vai ter como argumentar que o suspeito estava armado. Inclusive, supõe-se que talvez existam testemunhas de que esse opositor estava desarmado. É possível dar um tiro em alguém com a intenção de conter uma pessoa e sem querer matá-la. Ainda é possível criar essa justificativa. Agora, com o cassetete, é bem mais difícil matar sem querer”.
Carolina Grillo

Números alarmantes 6l3y2q
Nos últimos seis anos, o número de mortos pela polícia dobrou em Mato Grosso do Sul, saltou de 66 em 2018 para 132 em 2023, recorde no estado.
Entre os mortos pela polícia em novembro do ano ado, mês com maior número de óbitos por intervenção em 2023 estava Edileu Ramalho Floriano Junior, o “Marlboro”, de 20 anos, que “tombou” a tiro após avançar sobre policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar com uma faca.
Desde o início de 2024, 12 suspeitos já foram mortos pela polícia.
Carolina explica que os dados alarmantes de mortes por intervenção policial são reflexo de uma equação que parte da ação dos próprios bandidos, ando pela intransigência das polícias até a leniência do Poder Judiciário e a própria conivência da população.

Na prática a máxima de que “bandido bom é bandido morto” alimenta o círculo de violência da sociedade.
“O registro de uma morte por intervenção policial é o de um homicídio, só que já registrado junto com uma excludente de ilicitude. Ou seja, supõe-se que a morte ocorreu em legítima defesa do policial, que revidou à agressão por arma de fogo de algum meliante, e essa versão costuma ser aceita sem ressalvas por parte do sistema de justiça criminal. As circunstâncias deveriam ser investigadas para saber se a versão policial condiz com a realidade ou não. Só que há muita leniência por parte do Poder Público, do Judiciário. Na maioria das vezes é a PM que mata, esses casos vão para a Polícia Civil que não investiga, o Ministério Público acaba não denunciando, a Justiça aceita e a sociedade aplaude”.
Carolina Grillo

Estudos conduzidos pela especialista sobre a letalidade das policias no Rio de Janeiro e São Paulo, concluíram que a maioria dos casos não foi investigada, conta Carolina. Para a coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF a naturalização dessas mortes é cultural, foi estimulada ao longo dos anos e ganhou impulso com o avanço da extrema-direita no país.
“Houve todo um processo de muitos anos de convencimento, que data desde os primeiros grupos de extermínio da década de cinquenta em que os assassinatos dos criminosos já contavam com bastante apoio da opinião pública. O Brasil não tem pena de morte, mas a execução sumária de um suspeito de crime é percebida como algo desejável por boa parte da população. Esse fenômeno também está associado ao avanço de certos discursos de extrema direita e até de campanhas eleitorais que propagaram a ideia de que a produção da segurança depende de matar criminosos. O elogio às práticas de extermínio tem se popularizado bastante e ou a ter o respaldo de muitas autoridades públicas”.
Carolina Grillo
Conforme Carolina os procedimentos abertos para apurar as mortes por intervenção policial não podem ter um caráter apenas protocolar.
Eles devem ser conduzidos dentro de um rigor técnico e não com o único objetivo de punir policiais, mas, basicamente, ter o intuito de esclarecer todas as circunstâncias de uma ocorrência – como ocorre diante de qualquer outro crime. E, desta forma, cumprir todos os procedimentos delimitados na lei.
A redução de uma escalada na violência também a pelo controle institucional das polícias, explica Carolina.
“A partir do momento em que não existe um controle do uso da força por parte do Estado, um controle democrático feito pelas instituições de controle externo, não apenas as corregedorias isso facilita a formação de grupos de extermínio no interior das próprias polícias. Se os policiais podem fazer o uso da força letal, sem ter que prestar conta para a sociedade, sem ser responsabilizado por isso, isso facilita com que policiais em a utilizar dos recursos estatais para obter vantagens privadas. Ou seja, realizar, por exemplo, sequestros, tortura e morte de traficantes para extorquir determinadas quadrilhas; utilizar da força para entrar dentro do jogo do crime organizado. Uma polícia que age corretamente precisa ser uma polícia controlada, ela não pode agir fora do controle democrático, fora do marco da legalidade. Caso o contrário ela acaba agravando o problema da violência em vez de arrefecê-la”.
Carolina Grillo.

Em Mato Grosso do Sul o núcleo criminal da Defensoria Pública do estado já sugeriu à Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública) que inclua mecanismo específico para monitoramento de mortes em confronto, no Plano Estadual de Segurança Pública. O documento está em elaboração.
Sob sigilo 3r3n16
Após a morte de Antônio a Polícia Militar informou que abriu um inquérito, que será feito sob supervisão da Corregedoria, para avaliar as “circunstâncias que permearam a ação policial, bem como, a conduta de todos os envolvidos”. Ao fim desse processo, ele será encaminhado ao Poder Judiciário “a quem compete analisar e emitir seu julgamento acerca da ação policial”, informou a PM.
Procurada pelo Primeira Página, a Polícia Civil reiterou o que levou os policiais em busca do suspeito. (Leia aqui). Não houve resposta sobre o andamento da investigação ou a cargo de qual delegacia está a apuração. O caso foi registrado como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”.
Comentários (1) 3kf3p
Especialista? Faz, ou fez, parte das forças de segurança pública? Se não é pseudo especialista em teoria da segurança pública, nada mais. E com criminosos de alta periculosidade é assim mesmo quem ou o verdadeiro especialista em segurança pública atira ou morre…..