A estilista Kisany D’avila viu o roteiro da própria vida mudar aos 22 anos, quando recebeu o diagnóstico de nefrite lúpica. Ela não havia ensaiado para aquele momento e lembra claramente da cena em que foi informada que o lúpus, doença autoimune, havia atacado seus rins e, a partir daquele momento, deveria se preparar para as sessões de hemodiálise.
Setor de Hemodiálise da Santa Casa em Campo Grande (Foto: Maressa Mendonça)
“Quando eu recebi a notícia, foi um baque para mim. Fiquei muito assustada e angustiada. Eu não sabia como era o procedimento da hemodiálise. Era nova, tinha 22 anos e pouca informação referente a isso. A gente não quer receber uma notícia ruim, assim, de uma hora para outra, mas eu esperava receber a notícia com mais amor. E eu a recebi numa frieza total, como se fosse assim uma bomba. A bomba é sua, agora você precisa disso para sobreviver.”
Kisany D’avila
Mudança de cenário 226m4r
Não demorou até a jovem entender o tratamento. Depois veio a compreensão que, daquele momento em diante, as visitas ao hospital de Corumbá, onde deu início ao procedimento, ariam a fazer parte da rotina.
Kisany começou o tratamento de hemodiálise com um cateter na perna, fazendo três sessões semanais de quatro horas. Depois de um ano, ou para a diálise peritoneal, onde era obrigada a ar o dia inteiro no hospital e lembra de cada etapa do procedimento. O líquido de diálise era introduzido em sua barriga por meio de um cateter e agia como uma espuma absorvendo as substâncias tóxicas do sangue. Depois o líquido era drenado.
Houveram várias complicações no decorrer do tratamento, mas depois de um tempo ela aprendeu a conviver com a rotina de hemodiálise.
“Eu saía da hemodiálise, ia pro curso, almoçava. Cansei de terminar a hemodiálise e ir para a autoescola. Nessa época tirei minha habilitação, então tudo que eu conquistei foi através da hemodiálise. A hemodiálise me deu uma força enorme pra viver, entendeu? E, apesar dos pesares, eu comecei a agradecer por coisas pequenas, sabe? Eu comecei a dar valor a muita coisa que eu não dava.”
Assim como Kisany, centenas de pessoas am por sessões de hemodiálise semanalmente. A SES (Secretaria de Estado de Saúde) registrou, até agosto deste ano, 2.115 pacientes realizando Terapia Renal Substitutiva em Mato Grosso do Sul. Só em 2022, foram realizadas quase 249 mil sessões de TRS no Estado que conta com 16 Centros de Terapia Renal.
Dados do Censo de Diálise da SBN (Sociedade Brasileira de Nefrologia) contabilizaram quase 149 mil pacientes espalhados por todo o país em 2021. A maioria deles recebendo tratamento pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Os bastidores da hemodiálise 5l2l6p
Em cada um desses centros de tratamento existem personagens e objetos que compõem o cenário conhecido pelos pacientes. São técnicos, enfermeiros, médicos, recepcionistas, máquinas de diálise e cateteres.
Mas a protagonista da hemodiálise está nos bastidores: a água tratada. O elemento essencial para a prevenção de doenças e melhoria da saúde pública é também o fundamento das Terapias Renais Substitutivas.
O enfermeiro Milton César próximo a uma máquina de osmose reversa, essencial para o tratamento de água para hemodiálise (Foto: Maressa Mendonça)
“A água é importante para a hemodiálise. Se você não tem uma água tratada, purificada, você não tem hemodiálise”.
Milton César, enfermeiro e responsável técnico pelo setor de diálise da Santa Casa de Campo Grande.
Em Campo Grande, as clínicas e hospitais que trabalham com hemodiálise são abastecidas com água potável pela concessionária responsável pela distribuição em toda a cidade, a Águas Guariroba.
Isto não ocorre em todos os municípios brasileiros, mas é um ganho. Como a água recebida é de qualidade, não há uma sobrecarga no sistema de tratamento próprio das unidades de saúde.
O tratamento 311r1r
Em linhas gerais, Milton explica que a água potável a por três filtros. Um deles tira o cloro, o outro retira o cálcio e o magnésio e o terceiro o restante das sujidades. Esse os são apenas o pré-tratamento da água que será destinada ao tratamento dos pacientes renais.
Os filtros para tratamento da água de hemodiálise na Santa Casa, em Campo Grande (Foto: Maressa Mendonça)
Após esse processo, a água a pelo tratamento de osmose reversa em que é submetida a uma pressão intensa e tem qualquer tipo de bactéria eliminada. Por fim, esta água purificada chega até outro tanque de onde é distribuída para as máquinas de hemodiálise.
Desde o momento em que as máquinas são ligadas para o autoteste até a desinfecção dos equipamentos, a água está presente em todos os processos. Dentro e fora dos hospitais ela é o elemento essencial para evitar doenças e elevar o nível de saúde pública.
“A importância da purificação da água é justamente isso, vai ter contato com o sangue do paciente, então se não for uma água segura, se tiver qualquer impureza, o paciente vai ter alguma reação”, diz, enfatizando que, a cada sessão, am 120 litros d’água pelo corpo do paciente.
Sistema de tratamento de água para hemodiálise da Hiperrim, o maior do Estado (Foto: Maressa Mendonça)
Na Santa Casa de Campo Grande são realizadas, em média,1,5 mil sessões de hemodiálise por mês. Existem atualmente 22 máquinas para a filtragem do sangue dos pacientes, além das portáteis para atender os que estão internados no CTI.
Também localizado na Capital, está o maior sistema de tratamento de água para hemodiálise do Estado. Ele fica em uma clínica particular conveniada ao SUS (Sistema Único de Saúde), Hiperrim.
O farmacêutico industrial, Renato Finotti Junior detalha como funciona esse sistema de tratamento. Confira no vídeo abaixo:
Renato Finotti Junior
Ele reforça que a água para hemodiálise quando não tratada adequadamente coloca em risco a vida e a segurança do paciente.
“Um indivíduo normal ingere, em média, 14 litros de água por semana. Os pacientes que fazem hemodiálise estão expostos a aproximadamente 360 litros de água por semana, 25 vezes mais que a exposição à água pela ingestão diária”.
Os riscos 3a471f
“Aqueles que não podem lembrar o ado estão condenados a repeti-lo”.
George Santayana, filósofo espanhol.
A preocupação dos profissionais da hemodiálise em relação à qualidade da água não é infundada, mas baseada em um evento trágico que ocorreu há quase três décadas no Brasil e ficou conhecido como a “Tragédia da Hemodiálise”.
O caso é relembrado pelos profissionais durante cursos de capacitação para que nunca mais ocorra. Ele aconteceu em fevereiro de 1996, no município de Caruaru (PE), quando 60 pacientes de hemodiálise morreram em razão de uma intoxicação após o tratamento. As investigações comprovaram que a má qualidade da água foi responsável pelas mortes.
Pacientes de hemodiálise em Caruaru (PE), onde ocorreu a tragédia há quase 30 anos (Foto: Arquivo/TV Asa Branca)
Na ocasião, o município enfrentava uma seca severa e isso pode ter contribuído para o problema porque o nível do reservatório de onde a água era retirada estava baixo, mas a produção de toxinas estava alta. Essa água foi levada para o hospital sem o devido tratamento e sobrecarregou o sistema da hemodiálise.
O resultado foi trágico, mas mudou definitivamente as exigências para o tratamento da água em todo o país, fazendo com que novas medidas de segurança fossem adotadas em todo o Brasil.
Responsável técnico pela Hiperrim, o farmacêutico Luis Arthur Finotti Ono, resume como funciona esse monitoramento. A regra vale para todas as unidades de saúde. Confira no vídeo abaixo:
O farmacêutico Luis Arthur Finotti Ono
A SES (Secretaria de Estado de Saúde) atesta que “a água utilizada nos serviços de hemodiálise de Mato Grosso do Sul é considerada de boa qualidade para a realização do tratamento dos pacientes”.
Ainda segundo a secretaria, a Vigilância Sanitária do Estado tem um Programa de Monitoramento da Qualidade da Água dos Serviços de Hemodiálise no Estado. “Mensalmente são coletadas seis amostras de água dos serviços de hemodiálise que são avaliadas e comparadas ao longo do tempo”.
Monitoramento constante 4q3d5u
Mas o controle e monitoramento da qualidade da água não é uma exclusividade dos hospitais. Ele é feito diariamente pela Águas Guariroba e começa bem antes da chegada nos encanamentos das unidades de saúde ou nas torneiras das casas.
Colaboradora faz análise da qualidade da água no laboratório da concessionária Águas Guariroba (Foto: Maressa Mendonça)
A coordenadora do Laboratório de Análise da concessionária, Karina Goulart, explica que o controle da água envolve mais de 20 profissionais, entre biólogos, químicos e farmacêuticos, além de diversos equipamentos.
Segundo ela, diariamente são feitas centenas de análises. A coleta das amostras é realizada em diversos pontos, o que garante o monitoramento de todas as etapas, desde a coleta até a distribuição.
Estações de Tratamento de Água (ETA) Guariroba (Foto: Maressa Mendonça)
Dentre os pontos analisados estão: 245ex
?Turbidez
?Cloro residual Livre
?Cor aparente
?Flúor
?Coliformes totais
?Escherichia coli
Coordenadora do Laboratório de Análise da concessionária Águas Guariroba, Karina Goulart
O laboratório da concessionária é atestado pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) e os resultados das amostras são enviados nas faturas, além de ficarem disponíveis no site da Águas Guariroba.
Outros protagonismos 2f265j
A enfermeira Grassyelly Gusmão, do Serviço de Controle de Infecção do Hospital Unimed Campo Grande, comenta que a água está presente em todas as atividades que envolvem uma unidade de saúde.
“Lavar um instrumento do centro cirúrgico, fazer a higienização do espaço, ou até mesmo a medida principal para prevenir a infecção, a higiene das mãos. Tem a ver com o quê? Com a água. Se eu for contar, vai desde a higienização das mãos até uma cirurgia de alta complexidade no centro cirúrgico, em algum momento a água faz parte”, diz.
É por isso que, segundo ela, existe um cuidado do hospital para manter a qualidade da água, que envolve também o setor da manutenção.
Esses cuidados que começam nas Estações de Tratamento da água e são mantidos nos hospitais evitam a piora no quadro dos pacientes e garantem mais qualidade de vida para os que estão com a saúde fragilizada, especialmente aqueles que vivem a rotina da internação, como foi o caso de Kisany por alguns anos.
“O maior desafio que enfrentei foi não aceitar a doença, mas aprendi a viver com ela. Aprendi que, por mais doloroso que fosse, aquela máquina [de hemodiálise] me mantinha viva. Que cada agulhada, cada choro, era mais um dia vencido. No início, como toda mulher, eu sentia vergonha das cicatrizes nos braços, do cateter, só que depois de um tempo eu vi que aquilo era minha força. Era uma marca de cada luta que venci”.
Kisany entrou na fila do transplante em 2017, mas esperou muito tempo até conseguir realizar a cirurgia. Ela sofria com uma hemorragia crônica em razão do lúpus e precisava receber transfusões de sangue. Ao todo, foram 39 bolsas de sangue recebidas e, cada vez que ava por esse procedimento, era obrigada a sair da lista de espera pelo transplante. É uma regra para evitar complicações.
Kisany ao lado do pai e doador (Foto: Arquivo Pessoal)
A família dela começou a fazer exames na tentativa de encontrar alguém compatível. Após seis meses de espera, descobriram que o pai era 98% compatível com a filha e a cirurgia, enfim, foi marcada.
“Eu recebi a notícia com muito amor, com muita alegria e foi um misto de sentimentos, o medo a todo tempo acompanhava, porque toda cirurgia tem seus riscos. Mas, graças a Deus, deu tudo certo”.
A estilista lembra claramente do último dia em que fez a hemodiálise. Ela acordava às 5h, entrava às 6h no hospital, onde ficava até às 10h. “Eu sempre falava que, por mais doloroso que fosse o sacrifício que a gente fazia, aquilo dava uma nova chance de viver. Dava mais momentos com os familiares, com os filhos. Era um o para ter uma nova vida”, diz.
Kisany depois do tratamento de transplante (Foto: Arquivo pessoal)