Um conto de Natal 5l5725
Em janeiro deste ano eu comecei a atender o Bob, um senhor de 80 anos. Muito elegante, bem vestido, cheiroso e sempre com os cabelos bem arrumados e desconfio que cheios de laquê. Ele destoava um pouco do jeito casual da vida praiana. Descobri que ele havia tentado marcar sessões de urgência em dezembro mas […] 47724r
Em janeiro deste ano eu comecei a atender o Bob, um senhor de 80 anos.
Muito elegante, bem vestido, cheiroso e sempre com os cabelos bem arrumados e desconfio que cheios de laquê. Ele destoava um pouco do jeito casual da vida praiana.
Descobri que ele havia tentado marcar sessões de urgência em dezembro mas não conseguiu vaga e precisou aguardar até janeiro. Em nossa primeira consulta, ele me contou que perdeu o marido, a mãe e as irmãs nos últimos 5 anos.
Bob era florista em Sydney, tinha uma empresa muito próspera que atendia grandes empresas, ricos e famosos e até o comitê olímpico. Orgulhoso de seu próprio bom gosto e atenção aos detalhes, gostava de descrever e mostrar fotos dos lindos arranjos que criou.
O marido de Bob faleceu vítima da AIDS, condição que Bob também carrega.
– A razão da consulta de emergência é porque eu estava desesperado. Eu queria poder evitar o Natal! Estava sentindo tanta dor e fiquei com medo de fazer algo terrível. E realmente foi o que aconteceu. No dia de Natal eu bebi muito e fui pego pela polícia dirigindo embriagado. Eles me trataram muito mal, ei a noite na delegacia, perdi a minha carteira e precisei voltar pra casa a pé
Bob me contou que o Natal sempre foi uma data muito especial pra sua família, eles se reuniam antes do advento pra preparar os ‘Bolos Natalinos’, tradição inglesa que consiste em preparar vários bolos de fruta que am semanas sendo encharcados semanalmente com conhaque.
– Mas agora, sozinho, eu não tenho nem vontade de entrar na cozinha. Se eu pudesse dormir em novembro e acordar em janeiro, eu faria. E agora sem carro, ficou ainda mais difícil.
Durante o ano de 2022 a gente se viu a cada duas semanas. Durante as sessões a gente conversava sobre suas perdas – a saúde, a carteira de motorista, o marido, a mãe, as irmãs e o trabalho que lhe trazia um propósito.
Ele trazia fotos da família, o livro que criou com as receitas da mãe, cartas. Me contou sobre o processo de agem de cada um deles. Sobre o seu próprio medo da morte.
Conversamos também sobre os ganhos que amar tão incondicionalmente nos traz e, da ironia presente no fato de que ao escolher os ganhos, também aceitamos a verdade das perdas.
A gente conversou sobre nomear sentimentos e abraça-los por mais desconfortáveis que fossem. Sobre como fazer amigos, como ser ativo sem ter um carro, e até coisas práticas: como pegar o ônibus, e se cadastrar em serviços de auxílio a idosos.
Eu fiz uma carta pra corte local e Bob recebeu a carteira de motorista de volta em setembro. Precisou pagar pra instalar um bafômetro que automaticamente previne o carro de ligar ao primeiro sinal de intoxicação.
Em setembro ele me contou que estava fazendo amizade com duas vizinhas e que estava participando de um grupo de iradores de orquídeas. E estava montando um orquidário no quintal.
Em outubro me avisou que já não precisava de sessões quinzenais, uma por mês estava bom.
Fiz questão de marcar a sessão de dezembro bem pertinho do Natal.
Em novembro fizemos um plano para o natal que incluía planejar o dia, ter um plano B, lista de coisas que poderia fazer quando a saudade apertasse.
E finalmente em nossa última sessão, Bob me contou que um amigo de Sydney estava vindo ar o Natal com ele e a programação era um ‘banquete de frutos do mar’. As vizinhas estavam convidadas e alguns membros do clube de orquídeas.
Bob estava planejando um arranjo pra mesa de Natal e quis me contar cada detalhe.
Já no fim da sessão ele me disse que tinha um presente. Tirou da mochila uma vasilha de plástico com um pedaço de bolo. Eu sorri e perguntei esperançosa:
– É o bolo de Natal?

Ele sorriu e me disse: abre.
Sim, era o bolo de Natal. Bob me disse:
– Estou criando uma nova tradição: eu faço o bolo sozinho, mas nunca desacompanhado das lembranças da minha mãe e irmãs. E eu presenteio as pessoas que estiveram na minha vida durante o ano.
No cartão de Natal ele agradecia meu apoio em seu processo de voltar a gostar do Natal.
Eu chorei e nos abraçamos longamente.

*Cristina Mássia é psicóloga, campo-grandense, mas mora em Sidney, na Austrália. Nesta história verídica de Natal, ela conta um pouquinho sobre o recomeço de um paciente e a importância de se viver bem com nossa própria história.