A pedagogia da morte de Rihanna 252o2g
Um paralelo entre o ativismo da cantora, que já foi vítima de violência doméstica, e o feminicídio de mulher trans que escolheu o nome da artista 6l3y9
Existe uma canção da popstar Rihanna bastante conhecida e cultuada como espécie de catarse musical ao massacre de mulheres – seja pela violência sexual, seja pelos feminicídios, crimes incessantes, apesar das leis de proteção, das campanhas e das mudanças comportamentais já erigidas. “Man Downn”, homem ao chão em tradução livre, fala de uma jovem que matou um cara, no meio da multidão de uma estação de metrô, para reagir a estupro.
“Rum pu-pu-pum, rum pu-pu-pum
Man Down, álbum Loud, de 2011
Rum pu-pu-pum
Man down
Rum pu-pu-pum, rum pu-pu-pum
Rum pu-pu-pum
Man down”
O refrão tem onomatopéia de tiros e remete à imagem do homem caído, sem vida. O clipe de “Man Down” vai além. Escancarou a cena: a mulher da canção mata um predador sexual, depois de um ataque à vítima, interpretada pela própria artista.
Foi em 2011 o lançamento da produção, dois anos depois de Rihanna ser espancada pelo ex-namorado Chris Brown. A foto com os sinais da violência está no imaginário dos fãs.

A popstar fez gestão da crise por muitos anos. Recusou o lugar de vítima para se manter no de artista consagrada e empresária da moda poderosa. Em 2017, foi premiada em Harvard por seu ativismo na educação de meninas em Barbados, onde nasceu, e pelo apoio às causas humanitárias.
Mãe de um bebê na sequência de outro, segue como ícone entre os fãs. É diva para a população LGBTQIA+.
Rihanna empresta o nome a muitas transsexuais pelo mundo. No próximo dia 28, quando é celebrado o “Dia do Orgulho LGBTQIA+”, suas músicas e sua estética estarão presentes por todo o lado.
Uma dessas Rihannas viveu, em Mato Grosso do Sul, história totalmente inversa à da famosa. Curta, a trajetória da sul-mato-grossense contada nesta edição da Capivara Criminal simboliza, em um fato, o que as estatísticas traduzem em números frios.
Nas “quebradas” por aí, fora do mundo da arte e suas possibilidades de redenção, são as mulheres, cis ou trans, que vão ao chão. E não há poesia musical capaz de mudar esse panorama.
Mulheres ao chão 5i3r3f
Nascida em Aquidauana, cidade localizada a pouco menos de duas horas de viagem de Campo Grande, Rihanna Rodrigues dos Santos era uma mulher trans, preta, periférica, dependente química. Viveu por 37 anos apenas.
- Nas estatísticas oficiais, Rihanna está entre as 42 vítimas de feminicídio em Mato Grosso do Sul no ano ado.
(Fonte: http://estatistica.sigo.ms.gov.br/) - Em levantamento nacional sobre crimes contra a vida de pessoas LGBTQIA+, o estado aparece com cinco casos em 2022, o 13º no ranking nacional.
(Fonte: https://s3.amazonaws.com/s3.allout.org/images/LGBTIfobia_no_Brasil_-_All_Out_e_Instituto_Matizes.pdf)
Foi por vinte reais 1p1n5l
Rihanna dos Santos tombou sem vida em 20 de novembro de 2022, “Dia da Consciência Negra”. Caiu vítima de pauladas, desferidas pelo namorado, de 57 anos. Os dois se conheciam havia quatro anos e moravam juntos fazia oito dias.
Uma semana de convívio no mesmo casebre, em favela do Jardim Noroeste, em Campo Grande, redundou em morte para Rihanna.
Preso, o agressor, Juarez de Oliveira Souza, alegou ter se defendido depois de ser ameaçado pela companheira. A briga, contou, teve relação com a venda de um fogão, por míseros vinte reais.
Conforme a versão dada por ele à polícia, Rihanna usou o dinheiro para comprar droga.
Se em vida, a Rihanna sul-mato-grossense sobreviveu até onde deu à realidade de muitos integrantes da comunidade LGBTQIA+ – de invisibilidade, falta de oportunidade, pobreza, submissão à violência institucionalizada e sucumbência à marginalidade e seus efeitos deletérios – em morte poderá ter seu sofrimento transformado em lição à sociedade sobre formas de punição pela violência a mulheres trans.

Juarez de Oliveira Souza está preso desde o crime como autor de feminicídio. Pela lei brasileira, alterada em 2015, essa é uma qualificadora de homicídio, e tem o intuito de deixar claro quando uma mulher é morta apenas por ser mulher.
Pelos entendimentos jurídicos mais recentes, não importa o sexo biológico da pessoa. Se ela se entende como mulher e se está envolvida em um contexto de violência doméstica, trata-se desse ilícito como feminicídio se a consequência é fatal.
Esse posicionamento por muito tempo ficou numa zona cinza. No ano ado, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu em favor do enquadramento de um réu por agredir a filha trans na Lei Maria da Penha.
O relator da tese vitoriosa no STJ, Rogério Schietti Cruz, afirmou que o elemento diferenciador da abrangência da Lei Maria da Penha é o gênero feminino, o qual nem sempre coincide com o sexo biológico.
Em sinal de mudança, houve efeitos práticos da decisão, como a transferência do atendimento da população transgênero para as delegacias de atendimento à mulher em vários estados.
Em Mato Grosso do Sul, essa regra já valia em Campo Grande e foi estendida a todo o estado em março de 2023.

A morte de Rihana Rodrigues dos Santos foi investigada pela Deam (Delegacia de Atendimento à Mulher), em Campo Grande, em novembro do ano ado.
De acordo com a investigação jornalística da Capivara Criminal, o processo sobre o feminicídio, em trâmite na 1ª Vara do Tribunal do Júri, está na fase de alegações finais, quando cada parte apresenta suas teses, para depois o juiz decidir se o acusado vai ou não sentar no bancos dos réus.
São autos sigilosos, praxe para não expor as vítimas.
Em um eventual júri, será a hora em que o sentimento do cidadão comum sobre o fato vai falar alto. Os preconceitos e a LGBTfobia estarão no plenário.
É aí que entra a possibilidade de efeito pedagógico à sociedade sobre os crimes envolvendo transsexuais.
“É de total importância o reconhecimento como feminicídio, porque a lei desde o início teve essa intenção”, afirma a promotora atuante no Tribunal do Júri, Livia Bariani.
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“Temos sempre que linkar com as figuras descritas na lei e provar se no contexto havia violência doméstica ou se a morte ocorrer em razão do gênero feminino”, pontua.
Até o momento, a representação do réu, a cargo da Defensoria Pública, tem buscado desclassificar o caso para homicídio simples.
Pesa contra a vítima uma história pregressa, um caso de violência ocorrido em Anastácio, vizinha a Aquidauana.
Em 2017, ela foi acusada de tentativa de assassinato contra um ex-companheiro, crime pelo qual estava respondendo com seu nome de batismo, masculino.
Vítima mais de uma vez 20322r
Para o advogado contratado pela família para a assistência de acusação, a situação é, na verdade, mais um exemplo do quanto Rihanna foi vítima de desrespeito a sua orientação sexual.
O episódio, na época, não foi reconhecido como resultado de violência doméstica, como alegado por ela.
Confira abaixo, no vídeo, a entrevista do advogado Igor Santos à Capivara Criminal, no qual ele fala da importância da morte de Rihanna ser tratada como feminicídio e também do que chama de ciclo da violência ao qual, argumenta o advogado, ela foi submetida durante muito tempo.
Na visão de Igor Santos, a coluna não estaria falando de Rihanna Rodrigues dos Santos no ado, se ela tivesse sido acolhida e acompanhada, como prevê a Lei Maria da Penha.
