Para algumas etnias, conhecer Malala na Suécia é mais fácil que concluir ensino superior 4p4l4v

Apesar de iniciativas para levar mais indígenas aos bancos das escolas, os obstáculos ainda são intransponíveis para parte deles q1b6k

Em 2014, Jhonn Nara se preparou por alguns meses para uma cerimônia importante, que aconteceria em outro país e reuniria várias crianças de diferentes nacionalidades. Ela estava empolgada porque, embora estivesse preparada para conversar em inglês, no evento ela teria um momento de fala na sua própria língua: Guarani kaiowá.

Encontro com Malala
Encontro com Malala (Foto: Divulgação)

O encontro era na Suécia e Jhonn Nara Gomes fora escolhida pela Fundação World’s Children’s Prize, órgão internacional que atua na promoção da garantia dos direitos das crianças e adolescentes em mais de 110 países, porque morava no Brasil em uma área de conflito na Aldeia Tekoha Guaiviry, localizada em Mato Grosso do Sul, região de fronteira com o Paraguai.

A solenidade aconteceu no Castelo de Gripsholm, onde junto a outras 12 crianças Jhonn Nara participou da entrega do título de Heroína dos Direitos das Crianças à Malala Yousafzai, ganhadora do Nobel da Paz em 2012 por defender o direito das meninas à educação no Vale do Swat, sua terra natal.

(Vídeo: Divulgação)

Ao lado da jovem paquistanesa que ficou gravemente ferida em um atentado do Talibã, Jhonn Nara discursou em guarani sobre os direitos das crianças indígenas. “Não estava lá para conhecer o castelo ou ear, fui com a missão de falar a respeito da difícil situação do meu povo”, comentou nas divulgações da época.

Após oito anos, a jovem indígena fez cursos na área de cinema, participa de encontros e discussões sobre os povos indígenas, mora na mesma área de conflito, está prestes a concluir o curso de Formação de Professores Guarani e Kaiowá – Ára Verá – oferecido pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e se recorda com alegria dos dias ao lado da líder Malala. “Eu tinha 14 anos e foi uma experiência muito importante porque me lembro de ter sido incentivada pela Malala a continuar lutando pelos meus direitos. Ali, naquele momento e também depois em conversas que tivemos com ela, eu me identifiquei e me senti fortalecida com a história dela”, afirma Jhonn Nara.

Jhonn Nara em evento sobre cinema e povos indígenas (Foto: Redes Sociais)
Jhonn Nara em evento sobre cinema e povos indígenas (Foto: Redes Sociais)

A acadêmica explica que participou do Júri Especial da organização até o ano de 2019, quando completou 18 anos, e desde então é uma liderança na área da educação em sua comunidade. “Defendo o direito das crianças, principalmente as indígenas, a estudarem, terem lazer, saúde, de viver conforme a sua cultura e etnia sem preconceitos e violência”.

Jhonn Nara em evento sobre povos indígenas (Foto: Redes Sociais)
Jhonn Nara em evento sobre povos indígenas (Foto: Redes Sociais)

Ao finalizar o curso voltado a professores Guarani Kaiowá, instalado na Faculdade Intercultural Indígena (FAIND) da UFGD em 2012, ela planeja fazer uma segunda formação. “Nunca parei de estudar e ensinar a nossa língua às nossas crianças, mesmo dentro das limitações que vivemos. Tenho vontade de fazer outra graduação, e será por meio da Lei de Cotas”, pontua Jhonn Nara, hoje, aos 23 anos.

Foto: (Divulgação)
Foto: (Divulgação)

“Somos indígenas de diferentes etnias” o6o5s

Para ela, ingressar em uma nova faculdade onde deverá estudar com não indígenas significa ter o a conhecimentos que ainda não chegaram até sua comunidade, ainda que existam cursos específicos para a etnia. “O estudo que eu e outras pessoas da minha etnia fazemos é muito importante, é uma conquista importante para o nosso povo, e nós queremos e temos o direito de também receber outros ensinamentos que fortaleçam a nossa cultura em aprendizado, saúde, segurança e educação”, comenta.

ar graduações não específicas para indígenas é um desafio para algumas etnias em Mato Grosso do Sul. A produção dessa série especial contemplada no 4º Edital da Associação Nacional de Jornalismo de Educação (Jeduca) em parceria com o Itaú Social solicitou às quatro instituições avaliadas (UEMS, UFMS, UFGD e IFMS) dados da quantidade de ingressantes por etnia no período dos 10 anos da Lei de Cotas e todas informaram não possuir esse detalhamento. Embora não tenha os registros desde 2012, a UFMS encaminhou o levantamento que começou a fazer este ano.

(Arte: Thayanne Moraes)
(Arte: Thayanne Moraes)

A quase ausência de pessoas indígenas Guarani Kaiowá na relação de 2022 encontra eco na voz de Jhonn Nara. “Somos e defendemos os povos indígenas, mas pertencemos a etnias diferentes e cada uma tem as suas características”, ela explica ao enfatizar a importância do respeito às especificidades de cada grupo étnico, inclusive, em espaços educacionais, como a universidade.

Já matriculado e estudando com não indígenas, Claucir Matchua também é o retrato da pequena existência de sua etnia nos corredores da UFMS em Campo Grande. Aos 24 anos, ele é uma das duas pessoas indígenas kadiwéu que ingressou pela Lei de Cotas este ano. “Logo que cheguei, os colegas indígenas ficaram espantados quando eu me apresentava como kadiwéu porque poucos conseguem entrar, infelizmente”, diz.

O acadêmico também veio de uma região de fronteira, localizada em uma área de cinco aldeias no município de Porto Murtinho, a 360 quilômetros da capital, onde ele nasceu e ou boa parte de sua vida.

Claucir Matchua (Foto: Eduardo Nantes)
Claucir Matchua (Foto: Eduardo Nantes)

“No início eu me assustei em não encontrar nenhuma outra pessoa como eu, kadiwéu. Pensava, ‘o que eu to fazendo aqui?’ Mas depois, com a integração, fui me adaptando, convivendo com indígenas de outras etnias e isso me ajudou. Agora eu quero que meus amigos da aldeia, meus irmãos, também venham”, planeja.

Uma das coisas que mais sente saudades de fazer em comunidade é a dança, ritual importante para os kadiwéus e praticado em diversas cerimônias. “Homens e mulheres possuem os seus próprios movimentos, nós nos pintamos e é uma forma de partilha que sempre fazemos. Sinto muita falta”, fala saudoso.

Acadêmico Claucir Matchua em apresentação de dança kadiwéu no Festival Cultural Sarau no Parque (Foto: Igor Orenha/Sesic)
Acadêmico Claucir Matchua em apresentação de dança kadiwéu no Festival Cultural Sarau no Parque (Foto: Igor Orenha/Sesic)

Este ano, nas comemorações do Dia da Pessoa Indígena, o aperto da distância ficou ainda maior, pois no grupo de estudantes indígenas da UFMS ele se viu sozinho para representar o seu povo.“Convidei meus colegas a dançarem comigo, os ensinei e, por fim, também dancei no grupo deles”, pontua, reforçando que ver mais indígenas da sua etnia na UFMS “se tornou um sonho”.

Acadêmico Claucir Matchua em apresentação de dança kadiwéu no Festival Cultural Sarau no Parque (Foto: Igor Orenha/Sesic)
Acadêmico Claucir Matchua em apresentação de dança kadiwéu no Festival Cultural Sarau no Parque (Foto: Igor Orenha/Sesic)

A língua e a fala 3w715m

Já no segundo semestre da graduação, Claucir tem vivenciado a alegria de ver os estudos universitários já aplicados na comunidade Alves de Barros, onde estão os familiares.

“Por mais que tenhamos atendimento de saúde na aldeia, comecei a observar na adolescência que nós, indígenas, não tínhamos muita confiança nos médicos e enfermeiros não indígenas. É comum depois de ter uma consulta, acabar tentando resolver o problema com os remédios próprios, como raízes e fedegoso, ao invés de fazer o tratamento recomendado. E mesmo respeitando a nossa cultura, costumes e conhecimento do uso e manipulação de ervas medicinais, o comportamento de não aderir aos medicamentos cientificamente comprovados como benéficos para a saúde, é um problema”, explica o acadêmico da etnia kadiwéu.


O tema é caro para ele, que perdeu a avó por complicações de uma infecção generalizada na bexiga. “Ela ou por consultas e tinha exames agendados, mas não fez e só descobrimos depois quando o caso estava grave e não resistiu. Ali entendi da forma mais triste que não se tratava somente de um problema de comunicação entre profissionais da saúde não indígenas e indígenas. Quando não sentimos confiança naquilo que um médico nos fala, seguimos outro caminho, não nos cuidamos. Isso é sobre representatividade e a falta dela, assim como as doenças, também mata”, afirma.

Recentemente, o avô adoeceu e Claucir teve a oportunidade de acompanhar a consulta e explicar a importância da medicação. “Falei que deveria fazer uso dos remédios no prazo indicado pelo médico. Ele me ouviu com atenção, disse que irava eu saber todas essas coisas e seguiu o tratamento. Além de eu ser neto e indígena, eu falei tudo isso na nossa língua”, conta.

O kadiwéu é a primeira língua que ele e os dois irmãos aprenderam com a comunidade. Depois a família ensinou o português. “Meus pais sempre nos incentivaram a estudar. Não tivemos dificuldade em aprender português, mas na aldeia só falamos em kadiwéu, é automático chegar lá e falarmos igual aos demais”, comenta sorrindo.

Aldeia, Bonito e Sidrolândia 181n45

(Arte: Thayanne Moraes)
(Arte: Thayanne Moraes)

Nas terras onde nasceu e foi criado, é comum que os indígenas comecem a trabalhar na agricultura ou nos cuidados com o gado das propriedades vizinhas, na atividade de peão, logo na juventude. Claucir teve esse destino alterado quando os pais se separaram e ele se mudou para a cidade de Bonito com a mãe. “Apesar da dificuldade inicial de sair da aldeia, foi uma experiência boa porque dei continuidade aos meus estudos e ali terminei o ensino médio”.

Meu pai foi morar em Sidrolândia e viu que ali, devido à proximidade da capital, as pessoas indígenas tinham mais o às universidades públicas e orientou que eu fosse pra lá”, explica, pontuando que ao chegar se matriculou no curso de Técnico em Enfermagem e começou a trabalhar em uma fábrica de farinha como operador de máquina.

Logo fez amizade com outros indígenas e teve informações sobre a possibilidade de fazer universidade. “Na minha aldeia o o a essas informações ainda é difícil, tudo é muito longe da Capital e, por isso, sempre converso com meus familiares que moram lá a respeito da importância do ensino superior e do quanto ele pode fortalecer nossa cultura. Se eu tivesse ficado na aldeia, não teria alcançado a faculdade”, avalia.

E foi com grande emoção que, depois de estudar e fazer o vestibular, ele viu seu nome na lista de aprovados. “Eu não acreditava, fiquei pensando: ‘será que está certo isso aqui?’. Corri para mostrar ao meu pai, depois teve a alegria de contar para minha mãe, minha esposa. Eram duas vagas e eu consegui a minha”, relata.

Cota, uma parte, uma pequena parte do trajeto 486p43

Claucir é como o estudante universitário é conhecido fora da aldeia. Entre seus familiares, ele é chamado pelo nome indígena da avó, Egawiki, que se despediu. “Na nossa cultura, quando perdemos um ente querido os anciãos nos dão o nome daquela pessoa, independente se é feminino ou masculino, durante o ritual de despedida. Ganhamos esse nome indígena para simbolizar o nascimento no nosso luto”, diz.

Primeiro da família a ingressar em uma universidade, o acadêmico luta para não ver o sonho do diploma morrer e, com isso, tudo que almeja para o seu povo. Sem nenhuma bolsa de auxílio permanência, o primeiro ano no curso integral só tem sido possível graças à ajuda de amigos e familiares. A renda que consegue nos bicos aos fins de semana não é suficiente para suprir todas as despesas.

Acadêmico universitário Claucir saindo de Sidrolândia (Foto: Arquivo Pessoal)
Acadêmico universitário Claucir saindo de Sidrolândia (Foto: Arquivo Pessoal)

A presença nas aulas em Campo Grande é por conta do ônibus oferecido gratuitamente pela prefeitura de Sidrolândia aos acadêmicos universitários. O trajeto é de 100 quilômetros, somados a ida e volta. Quando os colegas de curso que moram na Capital estão se levantando para ir a UFMS, ele já está acordado desde às 3h da manhã.

Todo o esforço é para que o seu nome contabilize a quantidade de pessoas indígenas formadas em 2026; pois mais triste que ver somente dois indígenas da etnia kadiwéu ingressar este ano em todo Estado, é constatar que em 2019 apenas 1 indígena se formou e tanto em 2020 quanto em 2021 nenhum indígena, de nenhuma etnia alcançou o diploma do ensino superior na UFMS.

“Se não fossem as cotas eu não estaria aqui. Eu não iria alcançar a nota suficiente para entrar no modelo tradicional do processo seletivo. O ensino das nossas aldeias infelizmente está comprometido por vários fatores. E ainda assim a cota é uma parte desse grande trajeto que é o ensino superior para nós, indígenas”, finaliza Claucir.

Leia mais n1u6n

  1. É preciso uma aldeia inteira para uma indígena cursar medicina 5n14n

  2. Em quase 30 anos, indígena é a 1ª a conseguir se formar em Direito na UFMS 544d12

FALE COM O PP 6s423v

Para falar com a redação do Primeira Página em Mato Grosso do Sul, mande uma mensagem pelo WhatsApp. Curta o nosso Facebook e nos siga no Instagram.

Leia também em Educação! 1e4m42

  1. Últimos dias para pedir atendimento especializado no Enem 2025 6k4r3k

  2. Teletrabalho; computador (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

    Oficina gratuita ensina como fortalecer a comunicação comunitária e combater fake news ad39

  3. Diploma

    Já tem diploma? UEMS abre inscrições para nova graduação 5i3c5j

    UEMS abre vagas para nova graduação de quem já tem diploma. Inscrições...

  4. Estudantes em local de prova do Enade 2024 em Campo Grande (Foto: Willian Guedes)

    Provas do Enade ocorrem em outubro e novembro 5l5q31

    O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) publicou...

  5. Tatu-canastra e tamanduá são estrelas de exposição em Campo Grande 5a245y

    Conhecidos e aclamados pelos leitores do Primeira Página, tatu-canastra e tamanduá-bandeira serão...

  6. MP diz que escola em Juína será fechada sem ouvir comunidade; governo nega 2m284n